Manuel Raposo - Quinta-feira, 29 Março, 2012
Publicado em: Jornal Mudar de Vida
Foi preciso que dois jornalistas apanhassem umas valentes bordoadas da polícia, no dia da greve geral, para que a comunicação social viesse clamar contra a brutalidade e o “excesso” das forças repressivas. Bem vindos, senhores jornalistas, ao clube dos que apanham da polícia – não por prazer de vos ver sovados, mas porque essa é uma das realidades do país, e que não é de agora. Nestas ocasiões, com efeito, é bom lembrar às memórias selectivas que várias outras cargas policiais fizeram vítimas entre manifestantes, sindicalistas e pacíficos cidadãos nos últimos tempos sem que nenhuma onda de indignação se levantasse na comunicação social empresarial e sem que se considerasse que as liberdades estavam a ser espezinhadas.
Para recordar apenas alguns dos factos mais recentes, comecemos por citar a brutal carga policial, levada a cabo em Lisboa no dia 25 de Abril de 2007, contra um pequeno grupo de manifestantes que se designavam anticapitalistas e antifascistas. Levados a tribunal sob a acusação de desobediência à autoridade, foram absolvidos, três anos depois, de todas as acusações que lhes tinham sido imputadas pela polícia para justificar a repressão. A acção da polícia, claro, não foi a julgamento. Nenhum clamor.
Em Fevereiro de 2008, o despejo forçado do Grémio Lisbonense, uma colectividade com longos anos de actividade no centro da Baixa lisboeta, defendido por muitos dos seus utentes, foi igualmente abrilhantado por uma carga policial. Nenhum clamor.
Em 24 de Novembro do ano passado, também dia de greve geral, ficou provado aos olhos de todos (tanto mais que há vídeos que o mostram) que a polícia agiu com agentes à paisana que provocaram manifestantes. Um destes manifestantes, de nacionalidade alemã, foi espancado por esses agentes e acusado por responsáveis da polícia de estar indiciado “internacionalmente” por actos contra a ordem pública, a ponto de ser procurado pela Interpol. Afinal era mentira. Mas toda a comunicação social se fez eco das palavras da polícia e foi isso que ficou para a opinião pública. Quanto ao espancamento, terá sido mais um “excesso”. Nenhum clamor.
Sobretudo depois de o actual governo ter entrado em cena, e desde que as medidas mais penalizadoras dos trabalhadores começaram a ser aplicadas, apareceu o alerta (lançado pelo próprio governo) acerca dos perigos de “tumultos”. E daí a necessidade de reforço da autoridade policial. A comunicação social deu curso a esta propaganda e tem mesmo havido órgãos que se especializam em fazer de porta-vozes das “preocupações” das forças policiais e do governo com a ordem pública – como sucedeu, por exemplo, na altura da manifestação da CGTP de 1 de Outubro de 2011, apontada como início de um “calendário especial” da PSP e do SIS de prevenção contra o aumento esperado da “agitação social”. Esta “prevenção” justificaria, revelou a imprensa sem se escandalizar, a infiltração de agentes policiais em grupos considerados suspeitos pelas forças repressivas. Mais uma vez, nenhum clamor.
Por fim, mas não menos importante, recorde-se as repetidas incursões policiais em bairros sociais que, a pretexto de droga ou de desacatos, acabam quase sempre com invasões de casas, prisões, espancamentos, feridos a tiro, quando não mortos. Recorde-se ainda as perseguições e o baleamento de automobilistas em operações stop. Tudo noticiado, em regra, fazendo fé na versão policial dos acontecimentos – e, de novo, sem clamor.
O caso da manifestação de dia 22 deste mês parece ter feito acordar algumas consciências, ou, pelo menos, soltar algumas vozes. Veremos quanto dura este sol. Mesmo assim, o tom dominante das notícias centra-se na repressão que atingiu os dois jornalistas e na limitação à sua liberdade de trabalho – quando se sabe que a carga policial que varreu o Chiado revelou uma sanha cega que atingiu manifestantes e transeuntes sem distinções. E da parte do governo, a prontidão que manifestou para “inquirir” sobre os factos é, fundamentalmente, não nos iludamos, ditada pelo propósito de ficar de bem com a comunicação social empresarial.
O que está em causa é, no entanto, algo mais do que a liberdade de trabalho dos jornalistas ou a prevenção de arruaças. A crise senil do capitalismo – e particularmente a crise sem saída do capitalismo português – tende a gerar sucessivas ondas de protesto da parte das vítimas: a massa trabalhadora. O poder sabe disso. E, sabendo que não dispõe de argumentos “económicos” para comprar, como dantes, a paz social, previne-se com meios repressivos reforçados. Segue-se que a eficácia da repressão implica maiores poderes e maior impunidade para as polícias, e restrições crescentes às liberdades individuais e aos direitos de manifestação colectiva. Os cidadãos vão ser (já estão a ser) confrontados com o dilema: se queres segurança tens de abdicar de algumas liberdades.
Neste momento, a polícia como que se exercita atacando pequenos grupos e alvos menores, provocando-os ou aproveitando provocações de pouco significado. Mas o alvo do poder, como as autoridades não têm escondido, são os movimentos sociais de protesto, aqueles que verdadeiramente podem colocar em risco o poder da burguesia capitalista e do seu Estado. É por isto também que o silêncio da CGTP e do PCP acerca do que aconteceu no Chiado não é apenas estranho – é acima de tudo um erro político.
Publicado em: Jornal Mudar de Vida
Foi preciso que dois jornalistas apanhassem umas valentes bordoadas da polícia, no dia da greve geral, para que a comunicação social viesse clamar contra a brutalidade e o “excesso” das forças repressivas. Bem vindos, senhores jornalistas, ao clube dos que apanham da polícia – não por prazer de vos ver sovados, mas porque essa é uma das realidades do país, e que não é de agora. Nestas ocasiões, com efeito, é bom lembrar às memórias selectivas que várias outras cargas policiais fizeram vítimas entre manifestantes, sindicalistas e pacíficos cidadãos nos últimos tempos sem que nenhuma onda de indignação se levantasse na comunicação social empresarial e sem que se considerasse que as liberdades estavam a ser espezinhadas.
Para recordar apenas alguns dos factos mais recentes, comecemos por citar a brutal carga policial, levada a cabo em Lisboa no dia 25 de Abril de 2007, contra um pequeno grupo de manifestantes que se designavam anticapitalistas e antifascistas. Levados a tribunal sob a acusação de desobediência à autoridade, foram absolvidos, três anos depois, de todas as acusações que lhes tinham sido imputadas pela polícia para justificar a repressão. A acção da polícia, claro, não foi a julgamento. Nenhum clamor.
Em Fevereiro de 2008, o despejo forçado do Grémio Lisbonense, uma colectividade com longos anos de actividade no centro da Baixa lisboeta, defendido por muitos dos seus utentes, foi igualmente abrilhantado por uma carga policial. Nenhum clamor.
Em 24 de Novembro do ano passado, também dia de greve geral, ficou provado aos olhos de todos (tanto mais que há vídeos que o mostram) que a polícia agiu com agentes à paisana que provocaram manifestantes. Um destes manifestantes, de nacionalidade alemã, foi espancado por esses agentes e acusado por responsáveis da polícia de estar indiciado “internacionalmente” por actos contra a ordem pública, a ponto de ser procurado pela Interpol. Afinal era mentira. Mas toda a comunicação social se fez eco das palavras da polícia e foi isso que ficou para a opinião pública. Quanto ao espancamento, terá sido mais um “excesso”. Nenhum clamor.
Sobretudo depois de o actual governo ter entrado em cena, e desde que as medidas mais penalizadoras dos trabalhadores começaram a ser aplicadas, apareceu o alerta (lançado pelo próprio governo) acerca dos perigos de “tumultos”. E daí a necessidade de reforço da autoridade policial. A comunicação social deu curso a esta propaganda e tem mesmo havido órgãos que se especializam em fazer de porta-vozes das “preocupações” das forças policiais e do governo com a ordem pública – como sucedeu, por exemplo, na altura da manifestação da CGTP de 1 de Outubro de 2011, apontada como início de um “calendário especial” da PSP e do SIS de prevenção contra o aumento esperado da “agitação social”. Esta “prevenção” justificaria, revelou a imprensa sem se escandalizar, a infiltração de agentes policiais em grupos considerados suspeitos pelas forças repressivas. Mais uma vez, nenhum clamor.
Por fim, mas não menos importante, recorde-se as repetidas incursões policiais em bairros sociais que, a pretexto de droga ou de desacatos, acabam quase sempre com invasões de casas, prisões, espancamentos, feridos a tiro, quando não mortos. Recorde-se ainda as perseguições e o baleamento de automobilistas em operações stop. Tudo noticiado, em regra, fazendo fé na versão policial dos acontecimentos – e, de novo, sem clamor.
O caso da manifestação de dia 22 deste mês parece ter feito acordar algumas consciências, ou, pelo menos, soltar algumas vozes. Veremos quanto dura este sol. Mesmo assim, o tom dominante das notícias centra-se na repressão que atingiu os dois jornalistas e na limitação à sua liberdade de trabalho – quando se sabe que a carga policial que varreu o Chiado revelou uma sanha cega que atingiu manifestantes e transeuntes sem distinções. E da parte do governo, a prontidão que manifestou para “inquirir” sobre os factos é, fundamentalmente, não nos iludamos, ditada pelo propósito de ficar de bem com a comunicação social empresarial.
O que está em causa é, no entanto, algo mais do que a liberdade de trabalho dos jornalistas ou a prevenção de arruaças. A crise senil do capitalismo – e particularmente a crise sem saída do capitalismo português – tende a gerar sucessivas ondas de protesto da parte das vítimas: a massa trabalhadora. O poder sabe disso. E, sabendo que não dispõe de argumentos “económicos” para comprar, como dantes, a paz social, previne-se com meios repressivos reforçados. Segue-se que a eficácia da repressão implica maiores poderes e maior impunidade para as polícias, e restrições crescentes às liberdades individuais e aos direitos de manifestação colectiva. Os cidadãos vão ser (já estão a ser) confrontados com o dilema: se queres segurança tens de abdicar de algumas liberdades.
Neste momento, a polícia como que se exercita atacando pequenos grupos e alvos menores, provocando-os ou aproveitando provocações de pouco significado. Mas o alvo do poder, como as autoridades não têm escondido, são os movimentos sociais de protesto, aqueles que verdadeiramente podem colocar em risco o poder da burguesia capitalista e do seu Estado. É por isto também que o silêncio da CGTP e do PCP acerca do que aconteceu no Chiado não é apenas estranho – é acima de tudo um erro político.
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