11 Ago, 09:22h
Texto de António Pedro Dores
SEQUELAS DA ESCRAVATURA EM LISBOA
As notícias de verão, com grande parte dos jornalistas e políticos de férias, são feitas pelas polícias. Sem contraditório, os órgãos de comunicação social poupam trabalho e enchem os noticiários com o regime especial tradicionalmente oferecido às informações oficiais, à propaganda do Estado.
Foi e não foi o caso da destruição do bairro de lata de Santa Filomena, na Amadora. O cerco organizado pelo presidente da Câmara aos moradores, para obter os favores dos munícipes que se queixam da proximidade do bairro negro desvalorizar as suas propriedades (o que nesta fase da vida nacional até é um benefício, na medida em que o imposto sobre as habitações será então mais baixo) trai o racismo oficioso negado mas muito divulgado em Portugal. A polícia, em colaboração com os serviços sociais do município, organizaram uma forma de expulsar do bairro os moradores, aos poucos, para fins eleitorais (aí está: rende dar porrada no preto) e para fins de valorização do próprio território do bairro, bem situado para benefício dos seus proprietários e dos novos moradores que possam pagar os novos fogos a construir.
Neste caso os jornalistas, para além da versão oficial também deram voz a alguns moradores. O que se explica por ser evidente a brutalidade da acção, também denunciada por movimentos sociais: pessoas sem onde morar são condenadas a assistir à demolição das suas habitações precárias, pelas quais têm pago impostos nos últimos anos, “protegidas” pela polícia, que as abandona na rua imediatamente a seguir. Esta pena foi imposta a pretexto de estes moradores não terem estado presentes no recenseamento feito pelo município 19 anos antes (?!) no mesmo local, para efeitos de realojamento (assumido pelo Estado como um direito à habitação condigna, a que muitos trabalhadores não tinham e ainda continuam sem ter direito – e cada vez mais o problema se coloca para muita gente, sem condições para pagar as rendas aos bancos). Esta é apenas uma das muitas formas de discriminação contra os cidadãos cuja cor da pele faz deles potenciais descendentes de escravos, acossados regularmente por agentes do Estado racistas nos locais de habitação, ao serviço de políticas que exploram o prestígio que dá os castigos públicos aos negros – de que as prisões são outro exemplo, dada a desproporção de negros que aí estão encerrados.
Notícias recentes dão conta de ciclos de retaliação entre jovens e polícias no Casal da Mira, Amadora – com sete jovens presos e muitos outros também espancados, como é habitual – e de um jovem abatido em Campolide, Lisboa, pela polícia com um tiro no pescoço em tais condições que a própria direcção da polícia não defendeu o atirador. Foi um sindicato dos polícias que se veio queixar de o regime disciplinar ser contraditório com a estratégia geral de ordem pública a que os polícias estão sujeitos e de ser demasiado estarem sujeitos a processos-crime e à disciplina do Ministério da Administração Interna. Os jovens, esses, não têm ninguém que fale por eles: porque serão criminosos mesmo antes de serem condenados pelos tribunais.
Uns anos atrás, o primeiro polícia dos polícias anunciava que a falta de apoio do governo à inspecção de polícias que dirigia iria fazer-se sentir em número de mortos nas ruas por polícias, que nessa altura era zero. Na verdade a sua profecia veio a verificar-se na prática. O que me recorda a resposta – em meados dos anos 90 – de um assessor jurídico do governo de então à pergunta: “O que faz esse fascista em altas funções de segurança do Estado?” Resposta: “Onde é que quer que o meta?”
Nessa altura fazia-se o recenseamento do bairro de Santa Filomena, mas só agora chegou a altura de correr, à pressa, a população. Por alguma urgência, cujo sentido se desconhece. Mas que ultrapassa no terreno decretos judiciais, como já tinha acontecido anteriormente no Porto e em Lisboa, com despejos de okupas, sendo Portugal dos raros países na Europa onde tal movimento não está estabelecido. É como a autoridade quiser, sem reacção judicial.
Vale a pena pensar o significado do conluio dos poderes de Estado, incluindo os poderes judiciais, policiais, municipais, dos serviços sociais, que trocam informações entre si de modo a expulsar de casa, sem alternativas, as pessoas mais socialmente isoladas da sociedade portuguesa, a coberto do estigma esclavagista que trazem por nascimento na cor da pele. Dividindo-as e desorientando-as com processos de desinformação, caçam-nas em pequenos grupos mas de forma determinada, destruindo a pouco e pouco os seus magros haveres e incentivando-os a desaparecerem do mapa: “Vão para a vossa terra!” Vale a pena reflectir sobre a tolerância das instituições e das populações à regular violação dos direitos humanos denunciadas anualmente nos relatórios de organizações acima de qualquer suspeita mas sem eficácia prática.
Escravatura sob outro nome (1) é o título de um livro, recentemente premiado com o Politzer, de um jornalista norte-americano que revelou para surpresa dos seus patrícios, meio século depois dos movimentos cívicos de Martin Luther King, como a abolição da escravatura do Estados do Sul imposta pelos yankees vitoriosos da guerra civil foi, por um lado, o agravamento das condições de vida dos escravos e, por outro, um processo de encobrimento judicial e mediático das práticas de escravização continuada, contra a constituição acabada de ser vitoriosa, de centenas de milhares de negros recentemente formalmente libertados e tornados outra vez escravos a pretexto do pagamento de pequenas multas, que se tornavam dívidas eternas aos velhos e novos senhores de escravos.
A crise financeira está também a ser pretexto para o agudizar de práticas discriminatórias xenófobas e racistas, não só contra os negros. Contra os trabalhadores em geral, associando-os a privilegiados (calcule-se!), seja os enfermeiros e funcionários públicos em geral, seja os beneficiários de apoios sociais, seja apenas e tão só os desenrascados que arranjaram um canto para sobreviverem às misérias que a sociedade lhes impõe.
O Estado e as suas instituições especializam-se em cumprir escrupulosamente os desejos dos credores internacionais, também eles mobilizando a conversa dos privilégios dos outros para dividir e reinar, aguçando as rivalidades historicamente bem sucedidas entre os trabalhadores, prometendo aos polícias e assistentes sociais melhores condições de vida à custa do seu trabalho de redução da dignidade de terceiros – a quem espiam a vida para melhor os tramar. A coberto do manto diáfano mas sempre presente da estigmatização social gerida por estatutos sociais manipulados e alimentados por políticas perversamente desumanas longamente testadas e, na verdade, ilegítimas e mesmo ilegais, mas em curso.
ANTÓNIO PEDRO DORES | Sociólogo, Professor Universitário | antonio.dores@iscte.pt
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(1) Douglas A. Blackmon (2009) Slavery by another name: the re-enslavement of black americans form the civil war to World War II, NY, Anchor Book.
Publicado no Liberal: http://liberal.sapo.cv/noticia.asp?idEdicao=64&id=36716&idSeccao=527&Action=noticia
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